Arte da Ponte

Vida e morte não são forças adversárias, mas parceiras. Criam um movimento perpetuo onde os ciclos naturais se sucedem em pro de uma regeneração. O homem é compelido a participar deste renovar constante, pelas mudanças internas provocadas por perdas e provações peculiares à cada fase da vida. O processo não se faz sem dores e tropeços, incertezas e tentativas. Requer a coragem de encarar, de coração aberto, o que a vida traz, onde cada ser é desafiado a realizar o seu pleno potencial no tempo de vida que lhe é dado.

Como toda transformação, elaborar uma perda tem seu ritmo próprio, o da metamorfose. É no silencio da alma que se dá o embate para discernir os valores que trarão novo sentido ao viver. As perguntas essenciais sempre vêm à tona. As respostas válidas evoluem com o tempo e com o entendimento do indivíduo. Porém, elas sempre contêm o poder de mudar o destino e a riqueza da vida.


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O que é perda?
 

Perda é geralmente associada na nossa mente ao fracasso, à falta, à separação, ao abandono ou à morte e, como tal, é um assunto muito penoso porque dói e desestrutura. Porém, ao longo da vida, somos confrontados com inúmeras outras experiências de perda, conscientes ou não: perdas de sonhos, ilusões, expectativas, forças, juventude... quando somos impelidos a deixar para trás certos aspectos da nossa vida porque não correspondem mais à realidade do momento. Aprendemos então, aos trancos e barrancos, como abrir mão e nos preparar para a mudança. Elaborar essa mudança pode transformar algo doloroso em enriquecimento interno. Isso é o próprio movimento de amadurecimento do ser.

Elaborar as perdas é difícil?
 

Nesse processo, a civilização ocidental moderna não nos ajuda muito. Ao contrário, ela tenta fugir das questões dos limites, incentivando o apego à valores fugazes e superficiais, próprios da sociedade de consumo: sempre ter mais ; mais posses, mais poder, mais conquistas... Ao passo que os valores do ser não interessam à essa mesma sociedade, porque levam à contenção do consumo e escolhas mais centradas, que escapam da manipulação da publicidade, do marketing, etc. Resta a cada um fazer a avaliação do preço dos apegos na sua vida, questionar as suas prioridades, encarar o fim e o desconhecido. "Navegar é preciso" entre as pequenas e as grandes mortes, sempre subliminares a toda decisão e a tudo o que há neste mundo. O processo é corajoso e sofrido, mas o ganho é enorme.

E quando se tem medo da morte?
 

Vinícius de Morais escreveu num poema: "Ai dos homens que matam a morte por medo da vida." Vida e morte são indissociáveis. São dois momentos de um mesmo ciclo universal, cada um dando valor ao outro. Não se pode anular uma polaridade sem anular a oposta. O medo excessivo da perda abafa o potencial da pessoa, encarcerando-a e escravizando-a numa vida de morto-vivo. Enfrentar o medo e se preparar para as perdas necessárias ou inevitáveis que toda vida encerra, resultará sempre numa melhor qualidade de vida.

Pode-se controlar esse medo?
 

O enfoque "preventivo" ou preparatório pode ser fundamental nessa área. Por que esperar o golpe duro de uma grande perda arrasadora para refletir e se trabalhar, no meio do sufoco, do desespero, e às vezes, sem prazo? Por que não olhar desde já, num momento mais ameno em que se tem a oportunidade de perceber, sem drama extremo, certas atitudes e limitações que dificultam a vida e que são passíveis de serem transformadas? Esta é a proposta de trabalho da Arte da Ponte. Também é importante entender que grande parte desse medo é culturalmente inculcado. Nossa visão pode se abrir quando se aprende sobre os diferentes modos como outras culturas e outras épocas lidaram com suas perdas.

Qual é o primeiro passo para mudar de padrão?
 

Se observar e perceber tanto suas dificuldades quanto suas forças internas, é o primeiro passo para a mudança. Começar logo tem uma vantagem imensa: a de se ter (sempre se espera! ) tempo à sua frente, para construir e desfrutar melhor de uma vida livre de medos paralisantes. Se preparar para o inevitável não impede a dor, mas sim o pânico. Não cria obsessão macabra, mas sim uma apreciação redobrada da vida e das relações, enquanto bens temporários, únicos e preciosos. Permite também dissolver fantasmas e mitos comuns sobre o processo do morrer e criar respeito por esse momento tão importante e solene.

Porque esse título do trabalho : Arte da Ponte?
 

A ponte é o símbolo da transição, da passagem de um lugar para outro, de um estado para outro. Passamos por este processo muitas vezes ao longo da vida. Cada vez que topamos com as grandes crises, nosso mundo desmorona e se torna insatisfatório. Então, entramos num momento de transição: "a construção da ponte", quando somos forçados a analisar a situação com novos olhos, a vislumbrar outras soluções, a criar ações diferentes. Esse momento é muito importante porque vai determinar a qualidade de nosso futuro. Perdemos o conhecido, o antigo, mas ganhamos a renovação, pelo exercício da criatividade em todas as esferas como resposta à nova realidade. Fazer essas trocas de padrão de modo feliz, é a própria arte de viver.

Como pode a arte ajudar a se equilibrar?
 

O ato criativo é a primeira linguagem do homem desde que nasce. É o modo intuitivo e empírico como ele manifesta o despertar da sua consciência. A palavra arte, na sua origem hindu-europeia: are ou re, significa adaptar, ajustar, ou seja significa a capacidade do homem em modular imagens internas adequadas às novas experiências vividas, através da reformulação das suas representações simbólicas de conceitos ou visões do mundo. De fato, desde os primórdios da civilização, a coesão de cada grupo humano se mantinha através da constante encenação dos seus ritos e mitos, onde podiam ser reatualizadas as suas representações do mundo. Na Antiguidade, os gregos usavam a palavra artuo para designar essa capacidade criativa enquanto a palavra téchne designava as diversas formas de arte: escultura, música, etc. Consideravam a arte como um instrumento, uma “técnica” de educação para a harmonia e chegavam a utilizá-la numa função catártica para descarregar e transmutar energias desequilibradas. Assim a música, a poesia, o teatro e até a retórica eram tidos como remédios para a alma tanto do artista como do espectador.

A arte sempre guardou essa função?
 

Após o Renascimento, a idéia de que a Razão podia dar conta de tudo se apoderou aos poucos do mundo ocidental. Ele se enveredou pelas ciências exatas e relegou a arte a uma atuação subjetiva e individual. Atualmente, pelos estudos de Jung, se sabe que a atividade simbólica da alma -praticada por todos nos sonhos- é totalmente necessária ao homem para construir um mundo interno saudável e em contínua evolução. A arte, com sua linguagem de símbolos, estabelece um intercâmbio direto com o âmago do ser, porque ambos falam essa mesma língua simbólica, não verbal e não racional. Hoje, se reconhece que, ao se trabalhar a forma plástica, vai-se elaborando e polindo as formas internas, num jogo de respostas e transformações que levam, aos poucos, à mudanças de consciência e de atitudes no externo. Assim, a arte resgata, para o adulto, o modo primordial e intuitivo com o qual a criança apreende o mundo: pelo jogo e pelo prazer de criar.

Arte da Ponte [Annie Rottenstein]